Crowdlaw: quando a inteligência das multidões bate nas portas do Estado
Confraria pensante
Imagine que, num futuro próximo, os cidadãos possam opinar sobre as leis de seu interesse, inclusive relatando problemas na sua implementação. A trajetória participativa do cidadão poderia ser desde reportar dificuldades que seus filhos passam na escola pública até a elaboração da nova política de educação para o país e, ainda, tempos depois, acompanhar sua execução.
Fiquei quase uma semana (em março deste ano) enfurnado no Bellagio Center, uma espécie de retiro para fins intelectuais no norte da Itália, nos arredores de Milão. Embora o lugar seja maravilhoso (olha essa vista!), ficamos num esquema pesado de apresentações, discussões e construções colaborativas sobre essa tag #crowdlaw.
A atividade foi capitaneada pela Beth Noveck, conhecida por muitos como “a mãe do governo aberto”, já que foi pessoa-chave no governo Obama nesse sentido. Além disso, Beth é a fundadora e diretora do GovLab, uma mistura de think-tank com do-tank da Universidade de Nova York, voltado para questões de inovação em governo aberto. Nesse internato sobre crowdlaw, Noveck conseguiu reunir um time variado de cerca de 20 acadêmicos, inovadores, ativistas, hackers e gente do governo (me considero uma mistura de tudo isso aí!).
Ela sempre foi uma entusiasta da aplicação da inteligência coletiva para as ações do Estado. Seus ótimos livros, Wikigovernment e Smart Citizen, Smarter State, tratam disso de maneira bem extensiva e prática.
Mas, afinal, o que é crowdlaw?
Elaboração colaborativa de leis, participação social na construção de políticas ou uso da inteligência coletiva para a formulação de leis são algumas formas de explicar crowdlaw (com as minhas palavras!), mas vários são os pontos de complexidade do fenômeno.
Por exemplo, podemos pensar crowdlaw aplicado apenas à elaboração colaborativa de leis ou também a outras fases no ciclo de políticas públicas, como a implementação dessas leis? Debatemos bastante esse assunto. Juntei-me aos que consideram sua aplicação em todo o ciclo de políticas públicas. Veja esse quadro panorâmico elaborado pelo GovLab, com contribuições do grupo de Bellagio.
E devemos aplicar Inteligência Artificial para crowdlaw?
Uma das minhas discussões favoritas foi sobre se devemos — e como — utilizar novas tecnologias nos processos de crowdlaw, tais como aprendizagem de máquina, inteligência artificial, análise de grandes quantidades de dados (vulgo Big Data), realidade aumentada e por aí vai. Vendo os grandes avanços nas plataformas privadas (Facebook, Netflix, Amazon, etc) em mapear com detalhes as preferências dos seus usuários, penso ser inevitável e urgente o investimento de governos nisso também.
Por exemplo, se um determinado cidadão que ajudou a construir a lei reguladora de aplicativos de serviços de transporte privado, como Uber e Cabify, pode estar interessado em discutir outras políticas sobre assuntos correlatos, certo? Debater temas tais como a política que rege o transporte de carros autônomos ou o uso de drones no espaço aéreo. Para desenvolver tais mecanismos, governos têm de coletar dados de preferências participativas dos cidadãos e usá-los em benefício do próprio cidadão (uma mistura de Big Data, Machine Learning e Artificial Inteligence).
E, por ser do governo, discussões como essas trazem a natural polêmica sobre o uso ético dos dados da participação que gestores e políticos podem acessar em plataformas públicas de participação social. Debatemos sobre tudo isso, e, mais do que chegar a conclusões, creio que conseguimos avançar bastante na ideia de que governos não podem ficar alijados dessas tecnologias.
Qual que é o ódoborogodó de crowdlaw no momento?
Também foi incrível ver o estado-da-arte de alguns projetos de crowdlaw em contextos variados. Apenas para citar alguns exemplos, sem desmerecer os vários outros projetos em andamento no mundo, gosto muito do que o Ministério de Governo Digital de Taiwan está fazendo.
Representado pela Shu Shilin, vimos como o governo de Taiwan tem empreendido diversas experiências de engajamento social nos assuntos do governo taiwanês. Utilizando-se principalmente de ferramentas e plataformas já existentes, desenvolvidas em software livre, Taiwan tem promovido uma miríade inteligente de interações. Em outras palavras, eles utilizam várias ferramentas e canais para viabilizar diversos tipos de interlocução digital com cidadãos e colaboradores. Aqui tem um mapa visual dos projetos e canais.
No âmbito das cidades, vi com muito entusiasmo também os experimentos que a Prefeitura de Madrid tem realizado com o engajamento de milhares de madrilenhos na elaboração de políticas e resolução de problemas. Além da estrutura bastante inovadora já estabelecida em Madrid (haja vista o incrível MediaLab Prado!), essa cidade avança bastante na institucionalização dos processos participativos, ponto fundamental da nossa discussão no Bellagio Center.
O Coordenador-Geral da Prefeitura, Luis Cueto, mostrou-nos como uma lei recentemente aprovada tem sido essencial para consolidar e institucionalizar o processo participativo da cidade, chamado de Decide Madrid. A base para o Decide é o Consul, plataforma de consulta online desenvolvido pela cidade e utilizada por mais de 70 cidades no mundo. Olha só um trecho da lei citada por Cueto:
Ley 39/2015
Artículo 133. Participación de los ciudadanos en el procedimiento de elaboración de normas con rango de Ley y reglamentos.
1. Con carácter previo a la elaboración del proyecto o anteproyecto de ley o de reglamento, se sustanciará una consulta pública, a través del portal web de la Administración competente en la que se recabará la opinión de los sujetos y de las organizaciones más representativas potencialmente afectados por la futura norma acerca de:
a) Los problemas que se pretenden solucionar con la iniciativa.
b) La necesidad y oportunidad de su aprobación.
c) Los objetivos de la norma.
d) Las posibles soluciones alternativas regulatorias y no regulatorias.
Muitos outros projetos interessantes passaram por nossas vistas. Apenas para citar mais alguns, destaco um projeto da Islândia, país considerado por muitos como um “nirvana de inovação e participação social”. Robert Bjarnason nos mostrou o Better Reykjavik, website participativo que estimula a apresentação de posições e argumentos em que se baseiam os participantes. O Mzalendo, do Quênia, apresentado pela Jessica Musila, é um projeto bacana de monitoramento civil do parlamento desse país. Recomendo muito dar uma fuçada nesses aí.
Governos (incluindo parlamentos) estão estruturados para crowdlaw?
Outra discussão quente foi sobre como governos precisam abrigar experiências e novos processos permanentes de crowdlaw. Aí entra numa seara que posso opinar com mais propriedade, tendo em vista os anos de sofrimento tentando implementar o Portal e-Democracia na Câmara dos Deputados (que faz 10 anos este ano!).
Houve praticamente consenso na seguinte conclusão: precisamos constituir novas equipes de trabalho dentro do Estado para esse fim. Além disso, novos processos precisam ser criados e políticos e servidores públicos carecem de capacitação em crowdlaw e assuntos correlatos.
Primeiro ponto: setores e departamentos, como são organizados hoje no serviço público, não estão preparados para lidar com novos processos de trabalho como crowdlaw. Na verdade, essa organização hierárquica e dividida por funções mais atrapalha que ajuda. Na maioria dos órgãos públicos, o departamento de informação é separado do departamento de comunicação, que é separado do departamento de tecnologia, que é separado do departamento do negócio do órgão (ex: agricultura, transporte, cultura).
Precisamos de nova organização administrativa do serviço público, baseada em equipes multidisciplinares, e não nessa divisão weberiana que não faz mais sentido no mundo de hoje. Problemas complexos demandam equipes enriquecidas por especialistas de diversas áreas. Quando botamos numa mesma sala, as cabeças de tecnologia, gestão de informação, comunicação, jurídica e do negócio, milagres acontecem. É inteligência no seu máximo!
Indubitavelmente, servidores públicos precisam aprender a lidar com interação nas redes sociais, moderação de discussões virtuais, análise de dados da participação e de redes sociais, elaboração de relatórios participativos especializados, comunicação digital, trabalho em rede, etc.
Além de muuuuita experimentação, que já estamos fazendo e que precisa ser intensificada nessa área, tivemos uma boa discussão também sobre o passo seguinte à experimentação, ou seja, a institucionalização. Explico melhor: inovação, de forma geral, demanda tentativas diversas.
Em crowdlaw, por exemplo, precisamos testar como os cidadãos se comportam ao usar a interação X ou Y, como políticos aproveitam o conteúdo participativo e funcionários públicos se organizam para gerir tudo isso — apenas para citar alguns pontos que são impactados por uma experiência assim. Daí vem o passo seguinte. Testados e analisados alguns processos de inovação, chega a hora de se institucionalizar aqueles praticamente consolidados.
E o que é institucionalização? Vou explicar com exemplo. Depois de anos trabalhando no e-Democracia, funcionários e parlamentares aprendemos que, durante um certo período dentro da relatoria de um projeto de lei, se pode abrir a discussão para consulta pública digital, que é exatamente o que o Portal e-Democracia viabiliza.
Como institucionalizamos essa inovação? Resposta bem pragmática: alterando o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, incluindo dispositivos que tornam consulta pública na relatoria de projeto de lei uma FASE do processo legislativo. E temos propostas de alteração do Regimento Interno já em andamento que são muito interessantes, como o Projeto de Resolução nº 217, de 2017, do Deputado Eduardo Barbosa, por exemplo.
Em suma, precisamos melhorar nossas leis que regem o processo legislativo, reorganizar nossas estruturas do Estado e capacitar nossos servidores para gerir novos processos de trabalho, como a elaboração colaborativa de leis (vulgo crowdlaw).
Muitos outros pontos foram discutidos e vou estar sempre os abordando por aqui.
Se quiser saber mais, assista ao vídeo abaixo, pois bati um papo bacana com a Beth Noveck sobre alguns desses pontos(com legendas em portuguê). Aproveite para se inscrever no nosso canal no YouTube.
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