O chefe reclama, mas é grande parte do problema
Afinal, qual deve ser o papel do Estado na inovação de um país? Nesses dias, estava devorando o livro O Estado Empreendedor, da Mariana Mazzucato, indicação da brilhante colega servidora e pesquisadora Marizaura Camões. Segundo a Professora Mazzucato, o papel do Estado é não apenas realizar, regular, facilitar e incentivar a inovação, mas ser um player fundamental e estratégico no ‘sistema de inovação’ de um país, inclusive com investimento de alto risco e a longo prazo.
No entanto, quero aqui neste texto focar mais no objetivo bem específico que o Estado tem de apresentar serviços públicos com ótima qualidade para o cidadão. Outro dia perdi duas horas do meu tempo numa maldita fila no Na Hora, projeto do Governo do DF que congrega vários serviços públicos num só lugar. O cidadão vai ali para tirar a carteira de identidade, resolver um problema de conta de luz errada ou para emitir o documento do seu carro, que foi o meu caso.
Me lembrei, com muita inveja dos relatos da minha colega Maris Männiste da Estônia, com quem estive convivendo algumas semanas em 2019 num programa de pós-doc na Universidade de Hamburgo. Maris dizia que praticamente não tinha contato físico com repartições públicas. Resolvia tudo online, na maioria das vezes pelo celular. É como se o governo da Estônia fosse invisível.
Antes, no começo dos anos 2000, falávamos de inovação no ambiente público, e era conversa que despertava pouco interesse de colegas servidores. O padrão sempre foi: faz o que te é solicitado no seu órgão, resolva os problemas que te pedem, cumpra o horário e está bom. “Não precisa ficar quebrando a cabeça para criar coisas novas”! Melhorar determinado serviço era cobrança mais rara. Geralmente acontecia quando o ‘bicho estava pegando’, ou seja, havia uma crise que suscitava mudanças drásticas.
Hoje em dia, inovação virou hype. Há consenso bem razoável na sociedade brasileira de que o Estado tem de inovar em casa. Fazer mais e melhor, gastando menos recursos. Afinal, estamos em crise fiscal, o déficit público precisa diminuir, etc. Estou achando ótimo esse clamor pela inovação na área pública. Para a turma que trabalha com inovação, está tudo melhor, com mais apoio. Claro que ainda longe de ficar bom mesmo com a tão sonhada alocação de pessoas de maneira inteligente para trabalhar com inovação, por exemplo. Mas vai tudo melhor do que antes.
O pior problema de tudo para mim, entretanto, depois de longas reflexões, com quase 27 anos na área pública, é que não estamos atacando o principal problema para chegarmos ao Estado digital Shangri-lá, tipo o que a Estônia e Dinamarca alcançaram, diga-se.
Na minha opinião, um dos principais fatores emperradores da grande transformação que precisamos na área pública é o gestor público médio. É claro que os políticos têm sua culpa no cartório, porém não vamos falar deles hoje.
Explico. E vou simplificar meu argumento sem desmerecer os diversos fatores estruturais que compõem o problema. Escuto muitos colegas gestores médios reclamando que querem inovar mas o Controle fica no seu pé, a burocracia é desanimadora, e os incentivos para eles e suas equipes são muito baixos. Sabemos que o problema é estrutural, mas aqui vou dar um zoom na postura dos gestores médios diante do problema.
Há vários casos de órgãos e setores dedicados à inovação na área pública. Isso vai desde órgãos voltados ao planejamento e desenvolvimento de projetos de inovação em suas organizações públicas até laboratórios de inovação. Eu mesmo ajudei a criar alguns labs, em especial o Labhacker da Câmara dos Deputados, que conduzi por 4 anos. Tudo isso é importante, funciona bem em muitos casos e agrega bastante valor às suas instituições.
Mas esses órgãos não resolvem o problema principal. A inovação não viraliza na instituição. Fica à mercê de grupos de elite. Os projetos saem, e alguns são fantásticos, mas a um custo humano enorme e, muitas vezes, com pouco impacto. Em outras palavras, não conseguimos fazer com que a inovação seja prática comum por pelo menos boa parte dos setores das instituições públicas.
É ainda uma atividade de nicho. E tocada, não raro, por verdadeiros dons quixotes do serviço público; gente muito dedicada e que sofre muito para conseguir resultado. Sabe por quê tem esse custo todo? Porque em todo momento o servidor inovador vai esbarrar num gestor médio que vai emperrar ou dificultar seu trabalho. É o chefe da área jurídica, é o servidor do financeiro, ou mesmo é o colega gestor — de um setor vizinho no mesmo departamento — que está com inveja ou receio de que sua rotina possa ser afetada.
Esse gestor resistente à inovação sempre usará as mesmas desculpas para não se engajar: é a ‘ditadura’ do controle que não o deixa ousar, é a equipe que não acompanha seu ritmo, é a descontinuidade de projetos e a interferência política por parte do alto comando, e por aí vai.
Sim, são problemas crônicos e temos de combatê-los. Mas uma postura mais aberta e ousada por parte desses gestores em relação à inovação iria inclusive otimizar essa luta, não acha?
Com gestor médio, quero dizer aquele administrador público que não atua na definição da estratégia da instituição, mas toca atividades e projetos num nível tático e operacional. Essa é a turma que faz acontecer (ou não deixa acontecer!) no serviço público. Na minha opinião, a maioria dos gestores públicos médios do Brasil não estão preparados, nem são incentivados a inovar. Geralmente entraram por concurso público que praticamente não avaliou seu potencial para inovação.
Eles assumem o cargo seguindo um certo padrão conservador de gestão. É claro que isso está conectado com a visão conservadora do pessoal do topo, dos políticos e gestores de alto nível estratégico que pensam assim: “Vou nomear essa pessoa que não vai ficar inventando coisa para me dar problema”. É normalmente isso que se espera de um gestor público por parte de seus superiores.
Que seja alguém de confiança, eficiente em termos de cumprir com os procedimentos, e que no máximo deve melhorar um processo aqui ou um sistema ali. Mas, “por favor, que não invente inovação disruptiva, pois isso foge do controle”. Por esse motivo e por outros, gestores públicos médios, de forma geral, são obcecados com controle.
E inovação implica riscos. Assim, é muito mais seguro para o gestor médio atender ao básico e resolver os vários pedidos de favores do varejão da administração pública. Dessa forma ele se mantém no cargo. Inovação é residual no seu trabalho.
Mesmo quando gestores do topo, como ministros ou secretários de Estado, por exemplo, determinam que inovar é a regra, tal ordem pode não prosperar. Afinal, são os gestores médios que vão implementar os projetos. E o gestor médio é especialista em encontrar empecilhos para não inovar, se quiser, pois ele domina as condições técnicas para obstar. Haja vista o gestor de tecnologia de alguns setores da área pública, campeão em usar elementos técnicos (que só ele domina!) para colocar senões e dificultar o desenvolvimento ou a contratação de inovação.
Infelizmente esse é o perfil que tem predominado na administração pública no Brasil, de norte a sul. Rodo esse Brasil dando palestras, cursos e participando de reuniões. Vejo sempre os mesmíssimos padrões. Claro que há gestores incríveis, realizadores de feitos quase heróicos em termos de inovação e eficiência. Mas são exceções. A regra é “na dúvida, não ultrapasse”.
Penso, portanto, que temos de investir no desenvolvimento de incentivos para o gestor médio ser mais inovador. Algumas ideias interessantes estão postas e sendo testadas em algumas instituições. Tenho segundos para falar de pelo menos uma delas: limitar o tempo de ocupação de posição de gestão na administração pública. Quatro, três, dois anos?
Terminou seu “mandato”, meu amigo gestor, dê lugar a outro e assim vamos fortalecendo um sistema de rotatividade — que acho — será extremamente benéfico e eficaz a médio e longo prazo. Uma referência disso é o Tribunal de Contas da União, que fixou o tempo máximo de 6 anos para servidores ocuparem posição de gestor na sua organização. O TCU teve que criar um programa de preparação de gestores para poder atender a essa regra. Olha que beleza!
Vamos supor que João assuma, como gestor, uma determinada área. João sabe que a) terá, no máximo, 4 anos para fazer o seu trabalho, b) ciente que outras oportunidades de gestão vão surgir para ele (e para todo mundo!), porque muitas vagas serão disponibilizadas no futuro, em face da rotatividade institucionalizada. Será que assim João não ficará mais estimulado a fazer diferença no seu trabalho, conseguir mais resultados e visibilidade para uma nova posição no futuro?