O vírus político e seu efeito no serviço público

Cris Ferri
4 min readNov 11, 2020

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Já tive a felicidade de trabalhar com ótimos políticos e sei a diferença que isso faz para a eficiência da máquina pública. Nada melhor que ter um patrocínio político que impulsione seu trabalho. Você consegue equipe, o setor de tecnologia passa a priorizar seus projetos e você está mais blindado contra boicotes internos. Se já é difícil trabalhar com apoio político, imagina sem isso. E é exatamente essa a condição da maioria dos servidores públicos.

Autor: Leonardo | Crédito: Leonardo Sá/Agência Senado

Quero abordar neste artigo alguns dos problemas da política que afetam o serviço público. Não sou simplista, mas selecionei aqui alguns que mais me afligem. Se você trabalha na área pública, certamente já deve ter se deparado com eles. Não vou citar o problema da corrupção, pois já conhecemos bem isso. Prefiro explorar outras questões menos famosas, digamos.

De forma bem direta, vou falar de dois defeitos graves que me incomodam muito em políticos, até naqueles que não são corruptos: descompromisso com o Estado e despreparo para a gestão moderna.

Sabe aquele político que só pensa em autopromoção e fala sobre ele o tempo todo, com muito egocentrismo? O político precisa dar visibilidade e transparência ao seu trabalho e lutar por seu lugar de fala, mas o exagero disso é negativo demais, além de nos obrigar, servidores públicos, a ter que trabalhar sempre com foco em marketing para alguém.

Isso ocorre mais ainda agora, em tempos de ‘plataformização’ da comunicação política, ou seja, quando políticos gastam boa parte do seu tempo postando nas redes sociais, porque estar presente nelas é quase mais importante do que fazer seu trabalho.

Esse é o velho problema de focar mais no seu projeto político pessoal do que em ações efetivas para o Estado, e acaba tudo girando em torno da tal da eleição.

O outro problema, também muito comum, é o desconhecimento, por parte de muitos políticos em posição de gestão, de práticas inovadoras fundamentais de gestão. Um político que não entende de inovação, que não administra com base em dados e que pouco valor dá para a inteligência coletiva da sociedade está no século passado. Em suma, esse político governa órgãos públicos com as técnicas de gestão da década de 80.

Um político com experiência na área de saúde pode ser indicado para chefiar a Secretaria de Saúde do Estado, e isso parece bom, pois ele entende da área. Mas ele chega lá e não sabe gerir sob a ótica da inovação. E nem tempo tem para se capacitar.

Mesmo participando de eventos da área, acaba ficando somente na parte inicial, a da abertura solene (que poderia ser extinta de vez, não acha?). Assim, esse tipo de político apresenta dificuldade em obter conhecimentos novos de gestão e acaba embarreirando a vontade do servidor público de tocar pautas que demandem inovação (muito presente hoje).

Você já viu políticos participarem de cursos de inovação e ficarem até o final? Conto nos dedos.

Em sequência, um outro problema com que servidores públicos precisam lidar diariamente são aquelas indicações de pessoas equivocadas e ineficientes para cargos de gestão e de confiança. Mas o Secretário ou o Ministro precisa nomeá-las para atender a algum favor político.

Essas pessoas muitas vezes não têm méritos, qualificações mínimas para ocuparem tais cargos, mas gozam da confiança de um certo grupo político. Por fim, todos acabam sofrendo os impactos de uma gestão desqualificada dentro de um órgão, secretaria ou departamento.

Esse sistema vai criando um efeito cascata de ineficiência, pois o gestor despreparado, indicado pelo chefe político despreparado, tem dificuldade de entender e gerir os problemas do seu setor. Além de isso ser desmotivante para os servidores do órgão, esses são obrigados a tocar um bando de projetos sem sentido a mando do seu chefe político.

Em muitos casos, servidores públicos da carreira são indicados, mas desde que tenham afinidade político-ideológica com aqueles que estão no comando. Já perdi algumas oportunidades por não expor minhas preferências políticas, nem definir alinhamento político sistemático. Afinal, sou profissional, e isso não deveria ser importante.

No entanto, esse sistema acaba gerando dispersão de energia, ineficiência crônica e mal-estar geral no corpo funcional. Já vi isso acontecer demaaaaisss. E a cultura organizacional só vai piorando. Para subir na carreira, ou assumir um cargo de assessoramento superior, na maioria das vezes há um custo enorme. Claro que méritos e esforços são eventualmente reconhecidos, mas são hoje qualidades praticamente secundárias em comparação a uma ótima indicação política.

Não é meu objetivo aqui realçar os problemas típicos dos servidores públicos que prevaricam, trabalham de maneira burocrática e gozam de privilégios indevidos. Isso é assunto para outro artigo. Quis chamar a atenção para a interferência política negativa, que funciona como um vírus contaminando tudo.

Infelizmente, tenho uma má notícia para você e termino esse artigo em tom fúnebre. Trabalho há mais de 27 anos com políticos de todo tipo. O nível deles tem piorado muitos nos últimos anos, viu?! Respira fundo, pois o caldo vai engrossar.

*Esse é o segundo artigo da Série ‘Por que o serviço público nunca mais será o mesmo’. Leia o primeiro artigo clicando AQUI.

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Cris Ferri
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Written by Cris Ferri

Gestor e professor de inovação na área pública, curioso incansável, eterno inquieto, apreciador da boa cerveja e motorista de filhos.

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