Tire essa venda dos olhos, Servidor!

Cris Ferri
4 min readNov 14, 2020

--

Nos outros artigos da série Por que o serviço público nunca mais será o mesmo?, abordei os problemas da nova dinâmica do mundo, o vírus político e a campanha deliberada de enfraquecimento do serviço público. Agora, neste último artigo, vou falar sobre uma questão de âmbito interno mesmo.

Está na hora de olharmos para dentro. Será que somos esses seres técnicos que imaginamos? O mais importante é ser um executor eficiente?

Muito provavelmente, o que o fez entrar na organização pública onde você está hoje tem a ver com suas habilidades e competências técnicas, certo?

Cena do filme Tempos Modernos de Charles Chaplin

Não importa se você é professor universitário, enfermeiro do SUS, analista de sistema ou auditor. Você deve ter passado num concurso público ou foi avaliado em algum processo seletivo que priorizou seus conhecimentos técnicos.

A partir daí você começa a trabalhar e precisa fazer tarefas técnicas. Você tende a se especializar cada vez mais nesse conhecimento técnico, tornando-se especialista ou coisa assim. Como todo especialista e técnico, você procura focar em detalhes, acuidade e perfeccionismo.

No mundo de hoje, essa forma de pensar e de trabalhar pode prejudicá-lo na carreira e na vida. Por mais técnico que seu trabalho seja, é preciso que você desenvolva outras habilidades e minimize o lado técnico do trabalho.

Com o tempo, descobri que experimentar é a forma mais eficiente de fazer os projetos de inovação avançarem. Para experimentar bem, o perfeccionismo atrapalha demais. Para testar as coisas, necessitamos de abertura de mente.

O perfeccionismo é uma forma do cérebro de querer ter controle de tudo. Isso se torna uma prisão e deixa as pessoas medrosas, chatas e desumanas.

O problema não é a dedicação ao conhecimento. Não, claro que não. O erro é supervalorizar as competências técnicas em detrimento de outras, particularmente as competências socioemocionais.

No começo da minha carreira, eu deixava para segundo plano o investimento em relacionamentos profissionais, o que em inglês significa networking. Isso acontecia por timidez, por preguiça, por “nerdice” e por ingenuidade.

Eu achava que o lado técnico é que resolvia os problemas reais. Doce engano. Com o tempo, fui entendendo que tudo se trata de pessoas. São as pessoas que vão ajudar você a conseguir seus objetivos. E as deficiências técnicas que você tanto busca suprir vão ser compensadas por pessoas também.

Na verdade, investir demais no lado técnico acaba sendo uma fuga. É um ótimo jeito de culpar a política, os outros colegas e o chefe pelos seus fracassos: “Eles não entendem o que falo, pois não têm o meu preparo”. Olha a arrogância misturada com a necessidade de fuga para um lugar seguro (um bom livro técnico, por exemplo)!

O mundo de hoje precisa de profissionais polivalentes. Cada minuto que você gasta se especializando mais poderia ser usado para aprender outras coisas ou desenvolver competências socioemocionais.

Sim, é ótimo ser especialista em algo, mas o ideal é equilibrar essa especialidade com uma boa dose de multidisciplinariedade. Afinal, o mundo de problemas complexos demanda pessoas com a visão da floresta. E o tecnicismo faz focar apenas nos detalhes de uma árvore.

Você sabe que muitas das contratações (a maioria, muitas vezes) feitas por organizações privadas inovadoras não priorizam conhecimentos técnicos e especialidades?

O tecnicismo desumaniza também. Já vi tantos técnicos incríveis que perderam totalmente a noção do problema humano que deveriam resolver nos seus trabalhos. Então, pare de falar: “Não consegui aquela posição na organização porque sou técnico, não sou político”.

Todo mundo é político. Todo mundo precisa ser um pouco gestor de algo. Todo mundo precisa investir em desenvolvimento pessoal, principalmente aquelas pessoas que — como fui um dia — usam o caminho técnico como fuga confortável para justificar suas frustrações profissionais.

Então, quem continuar apenas investindo em habilidades técnicas vai acabar ficando obsoleto — se não já está — , pois vai ser facilmente ultrapassado por aquele garoto que sabe administrar um board de análise de dados, por exemplo.

Ser um técnico bitolado também nos faz ficar focados demais em execução, execução, execução sem fim. Achamos que a eficiência é realizada fazendo o que nos é solicitado de forma eficiente e em tempo hábil. Outro doce engano.

Claro que devemos ser ótimos executores, mas antes disso precisamos parar de vez em quando, olhar em volta, avaliar se nosso trabalho está gerando impacto real, mudar o rumo se necessário e, daí sim, voltar para a execução.

Afinal, como dizia Peter Drucker: ”Não há nada tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que não deveria ser feito”.

--

--

Cris Ferri
Cris Ferri

Written by Cris Ferri

Gestor e professor de inovação na área pública, curioso incansável, eterno inquieto, apreciador da boa cerveja e motorista de filhos.

No responses yet